A modalidade é algo que se nasce sabendo ou é possível aprendê-la?
“...não vivemos num mundo determinado. Ao contrário. Somos livres e temos o poder de mudar tudo a cada instante.”
Jean Guitton – Deus e a Ciência
Autor: Alcides Scaglia
Sendo assim, esclarecido que futebol se ensina (em todos os seus níveis: iniciação, especialização e profissionalização) cabe agora descobrir como ensinar (como treinar) e isto será possível através de outra área do conhecimento: a pedagogia. Mais particularmente a pedagogia do esporte, imbricando esforços com as teorias do treinamento.
Por mais incrível que possa parecer essa pergunta é um dos grandes enigmas que pairam na cabeça de muitos brasileiros. O senso comum diz que, ou os craques já nascem sabendo jogar, dotados de uma genética privilegiada (o gene futebol), ou atribuem o talento a um dom divino. Mas, tudo não passa de folclore, dito popular. O senso comum não tem compromisso com a verdade, ou seja, não precisa se justificar. Fala e está acabado: é verdade.
Já, ao se levar esta discussão para o campo da ciência, a história é outra, pois o pensamento científico presta conta de aquilo que afirma. Desse modo, não cabe apenas afirmar, é preciso explicar o método: a organização e ordenação de pensamentos e procedimentos, buscando explicar e justificar a(s) verdade(s) nas ciências naturais, humanas (sociais) e abstratas.
Assim, ao me apoiar nas teorias interacionistas, posso dizer que o homem é um ser condenado a ser livre, ou seja, em meio à sua liberdade, constrói o seu destino, produzindo cultura, como na sustenta Albert Jacquard, em sua obra “Herança da liberdade”.
Toda esta liberdade, que o possibilitou alcançar a evolução atual, é determinada pelo ambiente cultural que o rodeia. Os pássaros e outros animais vivem num ambiente natural pouco alterável, mesmo porque, alterações os levariam à extinção, pois nascem sabendo quase tudo que precisam para viver, sobrando-lhes poucas, ou quase nulas possibilidades de aprender novas soluções para sobrevivência.
Já o homem nasce sabendo quase nada, para viver num ambiente cultural muito alterável, portanto, tem a possibilidade de aprender quase tudo para a sua perpetuação, como saliente o professor João Batista Freire em “De corpo e alma”, sua mais densa obra.
A humanidade só se perpetua devido às suas duas gestações: uma biológica, na barriga da mãe; outra social, quando sai do ventre materno.
A gestação biológica, primeira etapa da perpetuação da espécie humana, concretiza-se devido à capacidade, adquirida em meio às evoluções, de procriar. Nesta procriação, dois hominídeos, de sexos opostos, copulam, doando metade de seus patrimônios genéticos para a criação de um terceiro, que caracteriza um ser intermediário. Este ser denomina-se genótipo, que nada mais é que um conjunto de genes (unidades de transmissão hereditária; situam-se nos cromossomos), que, interagindo com o meio ambiente, condicionam a manifestação de suas características, resultando no fenótipo (conjunto das características morfológicas e fisiológicas do indivíduo). Ao se preestabelecer o fenótipo, durante a sua coabitação com a mãe, ainda inserido na gestação biológica, apreende informações que não são genéticas, mas comportamentais.
Percebe-se, então, que no ponto de partida, há um espermatozóide e um óvulo, que contêm todas as informações necessárias para formar um corpo, caracterizando um ser biológico. Todavia, como ressalta Albert Jacquard em seus livros “Todos semelhantes, todos diferentes” e “Elogia a diferença”, isso constitui apenas a matéria-prima: o corpo. Mas, para sua sobrevivência, não é suficiente construir um corpo, é necessário, também, formar um ser: o homem cultural.
E é somente devido a essa magnífica insuficiência (saber quase nada ao nascer), que lhe garante a possibilidade de aprender quase tudo ao longo da vida, e, com isso, homologar sua condição de réu, condenado a ser livre para aprender.
Estas conexões, que representam um limite para o inato, realizam-se por intermédio da contribuição de outros homens, caracterizando-se o adquirido, a cultura humana. Assim, inicia-se a gestação social (cultural), que vem completar e solidificar a gestação biológica, possibilitando a perpetuação da espécie.
O homem, sendo um ser social, impregna e é impregnado pela sociedade. Para Jacquard, ser homem é partilhar da humanitude acumulada e participar com seu próprio contributo. Entendendo humanitude como a contribuição de todos os homens, de outrora ou de hoje, para cada homem.
Portanto, o homem está no mundo para se enriquecer com os atributos adquiridos e construir novos, que serão passados a outros homens. Entendendo, logicamente, que estes contributos não são transmitidos pelo patrimônio genético, pois não são assimilados em nível biológico, mas, tão somente, pela cultura.
Na oportuníssima frase de Jean-Paul Sartre, sintetizam-se as reflexões expostas: “Eu sou homem feito de outros homens”.
Em meio aos percalços dessa liberdade, o homem aprendeu atos nefastos, mas também, durante a sua gestação social, desenvolveu certas habilidades, que o possibilitaram ser mais, superando-se e transcendendo-se a cada conquista.
Esse superar-se atingiu todos os campos de atuação humana, quer seja no âmbito intelectual, no social, ou no motor, ocasionando assim, o aparecimento dos talentos esportivos, ou seja, pessoas que se sobressaem sobre outras na prática esportiva. Todavia, o que quero defender é o fato de que todos somos dotados da capacidade de aprender os atributos culturais produzidos ao longo dos tempos, pelas diferentes sociedades.
Portanto, sendo o futebol produto da cultura humana, ele é fruto da humanitude, logo é passível de ser ensinado. Ser um craque de futebol, já é outra questão que demanda um aprofundamento neste tema. Entretanto, o futebol é um esporte que, por ser coletivo, no qual cada jogador desempenha funções específicas, um craque será aquele que compreender mais rapidamente a dinâmica do jogo, sua lógica e as mais eficazes e eficientes respostas. Não precisando para isto excepcionais qualidades físicas, fato que é incontestável em outros esportes, principalmente os individuais.
Sendo assim, esclarecido que futebol se ensina (em todos os seus níveis: iniciação, especialização e profissionalização) cabe agora descobrir como ensinar (como treinar) e isto será possível através de outra área do conhecimento: a pedagogia. Mais particularmente a pedagogia do esporte, imbricando esforços com as teorias do treinamento.
Para interagir com o autor: alcides@universidadedofutebol.com.br
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