Fonte: Blog do Juca Kfouri
Deus me livre de eu ir lá!” (Caju e Castanha, em Futebol no Inferno, de José Soares)
Por LUIZ GUILHERME PIVA*
Ninguém queria apitar.
Calhou de na decisão se confrontarem os times das duas famílias mais
poderosas da cidade, e que viviam em guerra. Coisa de três gerações, com
mortes, traições, brigas de rua, roubos de gado, disputa eleitoral,
trombadas de carros, pedradas em janelas, tocaias, cuspidas e
xingamentos públicos – de tal modo que o resto dos habitantes tinha que
optar entre ser aliado de uma ou de outra.
Era o primeiro campeonato que disputavam. Antes, eram times de
fazenda, com empregados e parentes. Mas um deles resolveu trazer de fora
jogadores, treinador, medico e massagista e entrar na liga regional. O
outro foi atrás. Tiraram os melhores jogadores de todos os outros times e
começaram a vencer todos os jogos – a maioria, merecidamente; outros,
graças ao temor dos juízes. Em casos extremos, a partida acabava antes
por causa da pancadaria ou os visitantes tratavam de fazer algum pênalti
ou gol contra para evitar ferimentos.
Mas nenhum dinheiro convenceu ninguém a apitar a final. A Liga tentou
trazer gente de longe. Dois desistiram antes de viajar porque foram
informados do perigo. Teve um que viajou, se hospedou e fugiu: o hotel
ficou cercado por torcedores dos dois times, o pau quebrou, teve bala
perdida, quebra-quebra e tentativa de invasão. De madrugada ele pulou a
janela e sumiu.
Um que apareceu na cidade tentou ser esperto. Apresentou-se como
árbitro federado, deu cartão, referências e se ofereceu para a missão.
Dias antes, foi à sede de um time e pediu um dinheirão pra facilitar a
vitória. No dia seguinte, fez a mesma coisa no outro time. Fora o que
tinha cobrado da Liga. Satisfeito, bolso cheio, andava na rua e
desfrutava da fama de corajoso: o povo parava para apontá-lo, abria
caminho, cochichava. Mas acabou bebendo demais, foi parar na zona,
contou vantagem, a notícia correu, de manhã já tinha polícia e milícias
dos dois times na porta. Apanhou, devolveu o dinheiro e foi posto na
carroceria de um caminhão de porco quase sem roupa, sabe-se lá com que
destino.
Mais de um mês. Dois meses. Nada.
A Liga propôs dividir o título. Uma taça para cada um. De jeito
maneira. Nas rádios (uma de cada família) as acusações se
intensificavam, desafios, ofensas. Os jogadores que eram de fora tiveram
que ficar confinados nas fazendas para não se expor a nenhum acidente.
Uma das torcidas resolver fazer uma passeata para provocar o
adversário. Foi cercada e a guerra civil fechou lojas, escolas e
hospitais. Uma tarde inteira de pancadaria. Pararam antes de morrer todo
mundo.
Depois desse dia, nada funcionava. Toque de recolher permanente. A
única coisa normal era a missa. Cedinho no domingo o padre abria a
igreja, chegavam as velhas, depois os catequistas. Aos poucos, os homens
respeitáveis dos dois clãs e seus seguidores. Cada grupo de um lado da
igreja. Benziam-se, comungavam em filas distintas. Iam direto para seus
redutos.
O padre!
A ideia foi do presidente da Liga. Só o padre podia apitar a final.
De certa idade, meio alemão, calado, recluso na casa paroquial, era ele!
Foi mais um mês de negociação. Até aceitarem.
Mas o padre fez exigências. Portões fechados, nada de público, nem
rádio, nem fotógrafo, ninguém nas lajes e barrancos em volta. Só ele e
os jogadores. Bandeirinhas não haveria mesmo por falta de profissionais.
E sem reservas. Onze contra onze.
Mês de recados pra lá, mês de recados pra cá.
Tinha que ser assim.
E foi.
A polícia militar veio da capital e cercou o estádio.
O padre entrou. Chamou os onze de um time, os onze do outro, botou
todos a rezar ajoelhados na linha central, passou água benta em cada
testa junto com o sinal da cruz e os abençoou.
Tirou os cartões amarelo e vermelho do bolso, exibiu-os e os rasgou
em mil picotes. De frente para eles, abriu a batina e mostrou, na
cintura, dois revólveres carregados.
“Vou ficar aqui no meio-de-campo, parado, um revólver em cada mão. Vocês joguem o mais correto possível”.
O jogo foi sem graça. E terminou zero a zero. Cada time saiu pelo seu lado do muro. O padre saiu pelo portão central.
A Liga dividiu o título. Deu uma taça para cada um.
E a cidade voltou ao normal.
Menos a missa. Agora só vão as velhas e os catequistas.
* Luiz Guilherme Piva foi coroinha.
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