Bem Vindos!!!!!!

Seja como for o que penses,
creio que é melhor dizê-lo
com boas palavras.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Sem testemunhas

Fonte: Blog do Juca Kfouri


Deus me livre de eu ir lá!” (Caju e Castanha, em Futebol no Inferno, de José Soares)

Por LUIZ GUILHERME PIVA*

Ninguém queria apitar.
Calhou de na decisão se confrontarem os times das duas famílias mais poderosas da cidade, e que viviam em guerra. Coisa de três gerações, com mortes, traições, brigas de rua, roubos de gado, disputa eleitoral, trombadas de carros, pedradas em janelas, tocaias, cuspidas e xingamentos públicos – de tal modo que o resto dos habitantes tinha que optar entre ser aliado de uma ou de outra.
Era o primeiro campeonato que disputavam. Antes, eram times de fazenda, com empregados e parentes. Mas um deles resolveu trazer de fora jogadores, treinador, medico e massagista e entrar na liga regional. O outro foi atrás. Tiraram os melhores jogadores de todos os outros times e começaram a vencer todos os jogos – a maioria, merecidamente; outros, graças ao temor dos juízes. Em casos extremos, a partida acabava antes por causa da pancadaria ou os visitantes tratavam de fazer algum pênalti ou gol contra para evitar ferimentos.
Mas nenhum dinheiro convenceu ninguém a apitar a final. A Liga tentou trazer gente de longe. Dois desistiram antes de viajar porque foram informados do perigo. Teve um que viajou, se hospedou e fugiu: o hotel ficou cercado por torcedores dos dois times, o pau quebrou, teve bala perdida, quebra-quebra e tentativa de invasão. De madrugada ele pulou a janela e sumiu.
Um que apareceu na cidade tentou ser esperto. Apresentou-se como árbitro federado, deu cartão, referências e se ofereceu para a missão. Dias antes, foi à sede de um time e pediu um dinheirão pra facilitar a vitória. No dia seguinte, fez a mesma coisa no outro time. Fora o que tinha cobrado da Liga. Satisfeito, bolso cheio, andava na rua e desfrutava da fama de corajoso: o povo parava para apontá-lo, abria caminho, cochichava. Mas acabou bebendo demais, foi parar na zona, contou vantagem, a notícia correu, de manhã já tinha polícia e milícias dos dois times na porta. Apanhou, devolveu o dinheiro e foi posto na carroceria de um caminhão de porco quase sem roupa, sabe-se lá com que destino.
Mais de um mês. Dois meses. Nada.
A Liga propôs dividir o título. Uma taça para cada um. De jeito maneira. Nas rádios (uma de cada família) as acusações se intensificavam, desafios, ofensas. Os jogadores que eram de fora tiveram que ficar confinados nas fazendas para não se expor a nenhum acidente.
Uma das torcidas resolver fazer uma passeata para provocar o adversário. Foi cercada e a guerra civil fechou lojas, escolas e hospitais. Uma tarde inteira de pancadaria. Pararam antes de morrer todo mundo.
Depois desse dia, nada funcionava. Toque de recolher permanente. A única coisa normal era a missa. Cedinho no domingo o padre abria a igreja, chegavam as velhas, depois os catequistas. Aos poucos, os homens respeitáveis dos dois clãs e seus seguidores. Cada grupo de um lado da igreja. Benziam-se, comungavam em filas distintas. Iam direto para seus redutos.
O padre!
A ideia foi do presidente da Liga. Só o padre podia apitar a final. De certa idade, meio alemão, calado, recluso na casa paroquial, era ele!
Foi mais um mês de negociação. Até aceitarem.
Mas o padre fez exigências. Portões fechados, nada de público, nem rádio, nem fotógrafo, ninguém nas lajes e barrancos em volta. Só ele e os jogadores. Bandeirinhas não haveria mesmo por falta de profissionais. E sem reservas. Onze contra onze.
Mês de recados pra lá, mês de recados pra cá.
Tinha que ser assim.
E foi.
A polícia militar veio da capital e cercou o estádio.
O padre entrou. Chamou os onze de um time, os onze do outro, botou todos a rezar ajoelhados na linha central, passou água benta em cada testa junto com o sinal da cruz e os abençoou.
Tirou os cartões amarelo e vermelho do bolso, exibiu-os e os rasgou em mil picotes. De frente para eles, abriu a batina e mostrou, na cintura, dois revólveres carregados.
“Vou ficar aqui no meio-de-campo, parado, um revólver em cada mão. Vocês joguem o mais correto possível”.
O jogo foi sem graça. E terminou zero a zero. Cada time saiu pelo seu lado do muro. O padre saiu pelo portão central.
A Liga dividiu o título. Deu uma taça para cada um.
E a cidade voltou ao normal.
Menos a missa. Agora só vão as velhas e os catequistas.

* Luiz Guilherme Piva foi coroinha.

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